Congresso no Polígono das Secas

(ritmo senador; sotaque sulista)

1.

- Cemitérios gerais
   onde não só estão, os mortos.
- Eles são muito mais completos
   do que todos os outros.
- Que não são só depósito
   da vida que recebem, morta.
- Mas cemitérios que produzem
   e nem mortos importam.
- Eles mesmos transformam
   a matéria-prima que têm.
- Trabalham-na em todas as fases,
   do campo aos armazéns.
- Cemitérios autárquicos,
   se bastando em todas as fases.
- São eles mesmos que produzem
   os defuntos que jazem.
5.


- Cemitérios gerais
   onde não é possível que se ache
   o que é de todo cemitério:
   os mármores em arte.
- Nem mesmo podem ser
   inspiração para os artistas,
   estes cemitérios sem vida,
   frios, de estatística.
- Se muito, podem ser
   temas para as artes retóricas,
   que os celebram porém do Sul,
   longe da tumba toda.
- Isto é, para a retórica
   de câmara (câmara política)
   que se exercita humanizando
   estes mortos de cifra.

9.

- Cemitérios gerais
   onde não se guardam os mortos
   ao alcance da mão, do pé,
   à beira de seu dono.
- Neles não há gavetas
   em que, ao alcance do corpo,
   se capitalizam os resíduos
   possíveis de um morto.
- A todos os defuntos
   logo o sertão desapropria,
   pois não quer defuntos privados
   o Sertão coletivista.
- E assim não reconhece
   o direito a túmulos estanques,
   mas socializa seus defuntos
   numa só tumba grande.

13.

- Cemitérios gerais
   onde não cabe fazer cercas.
- Nenhum revezo caberia
   o que dentro devera.
- Onde o morto não é,
   só, o homem morto, o defunto.
- De mortos muito mais gerais,
   bichos, plantas, tudo.
- De mortos tão gerais
   que não se pode apartação.
- O jeito é mesmo consagrar
   cemitério a região
- Assim, há cemitério
   que a tudo aqui morto comporte.
- Consagrar tudo um cemitério
   é tudo o que se pode.

2.

- Nestes cemitérios gerais
   não há a morte excesso.
- Ela não dá ao morto
   maior volume nem mais peso.
- A morte aqui não é bagagem
   nem excesso de carga.
- Aqui, ela é o vazio
   que faz com que se murche a saca.
- Quem esvazia mais uma saca
   aliás nunca plena.
- Ela esvazia o morto
   a morte aqui, jamais o emprenha.
- A morte aqui não indigesta,
   mais bem, é morte azia.
- É o que come por dentro
   o invólucro que nada envolvia.

6.

- Nestes cemitérios gerais
   não há a morte gosto,
   táctil, sensorial,
   com aura, ar de banho morno.
- Certo bafo que banha os vivos
   em volta da banheira
   dentro da qual o morto
   banha na auréola espessa.
- A morte aqui é ao ar livre,
   seca, sem o ressaibo
   natural noutras mortes
   e no sabor de Rilke ou de cravo.
- Ela não é nunca a presença
   travosa de um defunto,
   sim morte escancarada,
   sem mistério, sem nada fundo.

10.

- Nestes cemitérios gerais
   não há morte isolada
   mas a morte por ondas
   para certas classes convocadas.
- Nunca ela vem para um só morto,
   mas sempre para a classe,
   assim como o serviço
   nas circunscrições militares.
- Há classes numerosas, como
   a de Setenta-e-sete,
   mas sempre cada ano
   o recrutamento se repete.
- E grande ou não, a nova classe,
   designada pelo ano,
   segue para a milícia
   de onde ninguém se viu voltando.

14.

- Nestes cemitérios gerais
   não há morte pessoal.
- Nenhum morto se viu
   com modelo seu, especial.
- Vão todos com a morte padrão,
   em série fabricada.
- Morte que não se escolhe
   e aqui é fornecida de graça.
- Que acaba sempre por se impor
   sobre a que já medrasse.
- Vence a que, mais pessoal,
   alguém já trouxesse na carne.
- Mas afinal tem suas vantagens
   esta morte em série.
- Faz defuntos funcionais,
   próprios a uma terra sem vermes.

3.

- Nestes cemitérios gerais
   os mortos não variam nada.
- É como se morrendo
   nascessem de uma raça.
- Todos estes mortos parece
   que são irmãos, é o mesmo porte.
- Se não da mesma mãe,
   irmãos da mesma morte.
- E mais ainda: que irmãos gêmeos,
   do molde igual do mesmo ovário.
- Concebidos durante
   a mesma seca-parto.
- Todos filhos de morte-mãe,
   ou mãe-morte, que é mais exato.
- De qualquer forma, todos,
   gêmeos, e morti-natos.

7.

- Nestes cemitérios gerais
   os mortos não têm o alinho
   de vestir-se a rigor
   ou mesmo de domingo.
- Os mortos daqui vão despidos
   e não só da roupa correta
   mas de todas as outras,
   mínimas, etiquetas.
- Daquelas poucas que se exigem
   para se entrar em tal serão,
   mortalha, para todos,
   e rede, aos sem caixão.
- Por isso é que sobram de fora,
   sem entrar nos salões da terra,
   entre pedras, gravetos,
   no sereno da festa.

11.

- Nestes cemitérios gerais
   os mortos não têm esse ar
   pisado, que uma dor
   deixa atrás, ao passar.
- Ou o ar inteligente, irônico,
   que muitos têm, de ter descoberto
   o que só eles vêem
   e não dizem, discretos.
- Eis um defunto nada humano,
   que nem lembra um homem, se o foi,
   e no qual nada mostra
   se a morte doeu, ou dói.
- Se lembra algo, lembra é as pedras,
   essas de ar não inteligente,
   as pedras que não lembram
   nada de bicho ou gente.

15.

- Nestes cemitérios gerais
   os mortos não mostram surpresa.
- A morte para eles
   foi coisa rotineira.
- Nenhum tem o ar de ter morrido
   em instantâneo ou guilhotina.
- Porém de um sono lento
   que adorme, não fulmina.
- Em nenhum deles há as posturas
   desses que morrem sob protesto.
- É sempre a mesma pose,
   sem nenhum grito, gesto.
- Entre eles, gestos de eloqüência
   não se vêem nunca, quando a morte.
- Todos morrem em prosa,
   como foram, ou dormem.

4.

- Cemitérios gerais
   que não exibem restos.
- Tão sem ossos que até parece
   que cachorros passaram perto.
- De mortos restam só
   pouquíssimos sinais.
- Muito menos do que se espera
   com a propaganda que se faz.
- Como que os cemitérios
   roem seus próprios mortos.
- É como se, como um cachorro,
   após roer, cobrissem os ossos.
- Eis por que eles são
   para o turista um logro.
- Se pensa: não pensei que a morte
   houvesse desfeito tão poucos.

8.


 


- Cemitérios gerais
   que os restos não largam
   até que os tenham trabalhado
   com sua parcial matemática.
- E terem divido
   o resto pelo nada,
   e então restado do que resta
   a pouca coisa que restava.
- Aqui, toda aritmética
   dá o resultado nada,
   pois dividir e subtrair
   são as operações empregadas.
- E quando alguma coisa
   é aqui multiplicada
   será sempre para elevar
   o resto à potência do nada.

12.

- Cemitérios gerais
   que dos restos não cuidam
   nem fazem prorrogar a vida
   ainda nos mortos, porventura.
- E cujos restos são
   de defuntos defuntos,
   por falta de folhasm de formigas,
   pra prolongar seu circuito.
- Nem conhecem a fase,
   prima, da podridão,
   em que os defuntos se projetam,
   quando nada, em exalação.
- Só restos minerais,
   infecundos, calcários,
   se encontram nestes cemitérios,
   menos cemitérios que ossários.

16.

- Cemitérios gerais
   que não toleram restos.
- Nem mesmo um pouco que se possa
   encomendar ao céu ou ao inferno.
- Eles, todos os restos
   da mesma forma tratam.
- Talvez porque os mortos que têm
   não tenham tal resíduo, a alma.
- Talvez porque esta tem
   consistência mais rala.
- E seja no ar fácil sorvida
   como uma gota em outra de água.
- Não há é por que usar,
   aqui, a imagem da água.
- Melhor dizer: como uma gota
   de nada em outra de nada.
 

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